Florestania

Florestania

Por Toinho Alves*
“Cidadania? Isso é coisa de gente da cidade. Aqui na Amazônia o que nós precisamos é de Florestania”. 

Foi assim, numa brincadeira, que a palavra apareceu, na metade da última década do século XX. Havíamos passado quinze anos andando pela floresta, acompanhando a luta de índios e seringueiros, trabalhando em organizações não-governamentais com projetos de saúde, educação, cooperativas etc. A novidade, naquele momento, é que alguns de nós tinham sido chamados a participar da nova administração da Prefeitura Rio Branco, capital do Acre. Uma cidade com trezentos mil habitantes, inchada, caótica, cheia de problemas. E com uma particularidade: a maioria da população havia migrado para a cidade há pouco tempo e ainda mantinha fortes traços culturais adquiridos em um século de vida na floresta. A cidadania a ser construída, portanto, deveria ser um pouco diferente.
Em 98, a mesma equipe assumiu o governo do estado. O termo “florestania” revelou, então, inúmeras possibilidades práticas na hora de elaborar políticas públicas para as áreas rurais. Deixou de ser uma palavra e passou a expressar um conjunto de idéias, propostas, maneiras de abordar os problemas do desenvolvimento numa parte significativa da Amazônia. Muitas pessoas entraram no debate, desenvolveram novos conceitos, fundamentaram com eles seus projetos que se transformaram em financiamento, produtos, serviços, ações. E o que começou como uma brincadeira virou um assunto muito sério.
Mas o que é, afinal, essa tal Florestania? “A cidadania na floresta” -costuma ser a resposta simples e apressada. É isso, sim, mas é algo mais. Além de um conjunto de relações sociais, direitos, deveres, leis e conquistas, a florestania é um sentimento que pode ser expresso da seguinte forma: a floresta não nos pertence, nós é que pertencemos a ela. Esse sentimento nos induz a estabelecer não apenas um novo pacto social, mas um novo pacto natural baseado no equilíbrio de nossas ações e relações no ambiente em que vivemos. É um sentimento orientador para nossas escolhas econômicas, políticas e sociais –e por isso inclui a cidadania- mas orienta também nossas escolhas ambientais e culturais –e por isso a transcende.
O ser humano tem se considerado, nos últimos séculos, o centro do mundo. Ao mesmo tempo, pensa que seu próprio centro é o “eu” consciente. O resultado desse pensamento é a exploração devastadora da natureza e das culturas humanas a ela associadas, consideradas inconscientes e primitivas. Assim, atende-se às vontades econômicas e políticas não da humanidade mas de uma parcela muito pequena dela. O sentimento da florestania nos dirige à superação do antropocentrismo e do etnocentrismo que lhe é inerente. Há muitas riquezas neste planeta, a vida é a principal delas. Todos somos herdeiros destas riquezas: os povos que nele habitam, as gerações que ainda virão habitá-lo, os animais, as árvores, a luz, a água e até as pedras.
O ponto inicial da florestania é, portanto, o respeito reverente pelos ecossistemas. O equilíbrio dinâmico dos ambientes, os ciclos da natureza como acontecem em cada lugar, as relações entre os seres e elementos que levaram milhões de anos para chegar à forma que hoje têm, essas são coisas que constituem um “terreno sagrado” em que devemos tirar as sandálias para entrar. O mínimo de impacto e alteração deve ser buscado. E há lugares em que esse mínimo é zero: áreas intocáveis, santuários, partes íntimas da natureza nas quais a soberania absoluta do não-humano deve ser reconhecida.
O segundo ponto é o respeito -não menos reverente- pelos povos indígenas e as populações tradicionais, cujas culturas tendem a evoluir lentamente mantendo relações equilibradas com o ambiente do qual extraem sustento e sabedoria. E não se trata de uma atitude utilitarista, que prega a proteção aos povos indígenas porque “eles podem nos ensinar os segredos da natureza” economizando anos de pesquisa, por exemplo, na fabricação de medicamentos. Trata-se de reconhecer que esses povos são valiosos não apenas para “nós”, mas para si mesmos.
Costuma-se dizer que o maior tesouro da floresta é a sua biodiversidade. E o lugar de maior biodiversidade no planeta é a região do Alto Juruá, que é habitada por seringueiros, agricultores, ribeirinhos e vários povos indígenas. Então pode haver ocupação humana e biodiversidade? Sim, porque são tipos humanos diferentes uns dos outros, com padrões civilizatórios diferentes. Uns preservam mais certos animais, outros cultivam e guardam sementes de plantas variadas e acabam, assim, fornecendo em seus territórios abrigo para a diversidade da fauna e da flora. A biodiversidade depende da sociodiversidade, depende dessas populações manterem suas culturas. Isso significa que não devemos apenas ter respeito pela diferença: temos que ter amor pela diferença, gostar dela.
Esses são os pontos fundamentais deste sentimento orientador que temos chamado de florestania. É um olhar amazônico que podemos lançar sobre os dilemas e exigências do mundo contemporâneo. É a nossa contribuição no esforço que a humanidade faz para garantir um futuro sustentável.
A sustentabilidade é o que Hobsbawn chamou de “utopia do fim do milênio”. Pois que seja a realidade no início de um novo milênio. O conceito é conhecido desde o Relatório “Nosso Futuro Comum”, lançado pela ONU em 1986, que propunha o desenvolvimento sustentável. Melhor dizendo, o desenvolvimento ambientalmente sustentável. Mas a exigência da sustentabilidade se estendeu para outros aspectos do desenvolvimento. E na Amazônia esses aspectos ficam bastante evidentes.
Na economia, a sustentabilidade foi sacrificada por um sistema saqueador de matéria-prima, no qual a floresta só tem algum valor quando é derrubada. Sabemos que é possível gerar riqueza, garantindo trabalho e renda suficiente para uma vida digna, quando se valoriza os produtos e serviços compatíveis com a conservação da floresta. Propomos que um novo tipo de extrativismo –comunitário e de baixíssimo impacto ambiental- seja a base da atividade econômica fornecendo materiais para a agroindústria que os transformará em alimentos, fármacos, combustíveis, tecidos, resinas, móveis, corantes e tudo o mais que o mundo inteiro necessita e a floresta fornece em abundância. Propomos também que sejam justamente remunerados os serviços ambientais da floresta: o equilíbrio do clima, a regulação da temperatura global, a absorção de carbono, a manutenção da biodiversidade etc.
Ainda assim, sabemos –pois a florestania nos ensina- que todo sistema econômico só é sustentável quando se assenta em bases comunitárias. As exigências de produção e exportação não podem destruir a vasta economia informal, não monetarizada, dos povos da floresta. Seus valores de uso, seus sistemas de troca, suas tecnologias simples e seus conhecimentos ancestrais devem ser respeitados e estimulados. Temos que mudar as bases conceituais da ciência econômica. Atualmente, a canoa cabocla feita com um tronco de árvore não cabe no pensamento econômico formal. Cabe o barco de alumínio, fabricado pela indústria e vendido pelo comércio, sobre o qual incidem impostos, taxas e cálculos. Na floresta, essa economia formal enferruja e não agüenta carga.
A sustentabilidade social foi sacrificada por um sistema gerador de desigualdades, com a concentração fundiária expulsando as populações para as periferias urbanas onde concentram-se a miséria e a violência. É necessário, portanto, distribuir renda e propriedade, universalizar a educação e o atendimento à saúde, providenciar habitação de qualidade, garantir a aposentadoria dos mais velhos e a formação profissional dos mais jovens etc.etc.
Mas também aqui a florestania ensina que os critérios para avaliar a qualidade de vida e as ações para promovê-la devem ser repensados. O Incra distribuiu, durante anos, lotes quadrados de reforma agrária até que os seringueiros exigissem a criação de Reservas Extrativistas e mostrassem que a natureza não distribui as árvores e cursos dágua de forma regular e geométrica. Os governos ainda hoje insistem em construir conjuntos habitacionais em terras altas, sem água nem sombra, com cimento e fibra, e quer que as famílias adaptadas aos séculos de vida ribeirinha passem a morar naqueles caixotes.
As soluções dos problemas sociais, como sempre, estão no chão das comunidades e não nas pranchetas da tecnocracia. Ao subir o rio, evitando a migração das famílias para as cidades, a justiça social encontra as parteiras e curadores da floresta, a água limpa dos igarapés, as soluções arquitetônicas com madeira e palha, a solidariedade das vizinhanças e do sistema de compadrio, a sabedoria dos velhos e a alegria dos jovens ainda não contaminados pelas drogas. Será, portanto, necessário incluir esses valores nos sistemas de educação e saúde e em todas as políticas sociais.
A sustentabilidade política foi sacrificada por um sistema que concentra as decisões e o poder, para distribuir favores em época de eleições. Mesmo os governos mais bem intencionados acabam sendo experiências rápidas e seus benefícios duram quatro anos. Depois, tudo vem abaixo quando o governo seguinte destrói o que o anterior construiu. Para mudar isso, é necessário que as ações e projetos não sejam do governo mas do povo inteiro, que as organizações sociais participem, os sindicatos, cooperativas, conselhos, as mais variadas formas de organização social sejam agentes ativos na tomada de decisões desde a fase inicial de planejamento e elaboração.
Mais uma vez, no entanto, a florestania nos lembra que devemos ampliar nossa noção de democracia. “Cada cabeça, um voto” é uma fórmula boa mas limitada. É necessário incluir o voto dos que ainda não nasceram. E é necessário prestar atenção aos que não sabem falar nas assembléias para que seu silêncio não seja confundido com concordância. Maiorias e minorias são artificiais, assim como as lideranças faladoras. Temos visto muitas reuniões em que os homens, na sala, decidem tudo enquanto as mulheres estão na cozinha. Depois da reunião, o que foi decidido não se sustenta, porque em cada família o matriarcado vai encontrar outras soluções para os problemas.
E o que dizer da participação não-humana nas decisões? É possível que a política agrícola, por exemplo, seja contestada pelo tempo –que resolveu não chover. Ou pelo atraso na floração das árvores, por uma migração inesperada de pássaros, por uma praga de lagartas. Ou porque muita gente ficou “panema” (azarado para a caça) e faltou comida na hora do mutirão. Que processos inconscientes estarão ocultos em tais “decisões”?
Isso nos leva ao chão de toda sustentabilidade: a cultura. Sem sustentabilidade cultural, nada dá certo. Primeiro por uma questão prática. Quem trabalhou em organizações não-governamentais já sabe: muitas vezes um projeto democrático, ambientalmente sustentável, economicamente viável, socialmente justo, caminha bem só enquanto o técnico da ONG está na área. Depois que ele sai, acabou. Por que? Porque a comunidade não assimilou aquilo, não faz parte da estrutura familiar, dos hábitos, da cultura da comunidade. Então a escola não dá certo, porque é a escola do branco, formal. O posto de saúde não dá certo, porque depende da química multinacional e despreza as ervas e os conhecimentos dos pajés. Em resumo, se não for sustentável no ambiente da cultura, não vai ser sustentável nem economicamente, nem ecologicamente, nem politicamente, nem socialmente.
Mas além destas questões práticas, há o imponderável. É no universo da cultura que se processam os grandes ciclos do inconsciente coletivo: os mitos, os valores, a vida e a morte, a saúde e a doença, o poder e a autoridade. E é também aí onde se sedimentam as fases do processo civilizatório e onde se determina seu grau de afastamento ou proximidade em relação à natureza. É na cultura, portanto, onde o povo pode viver um desenvolvimento que emana de sua origem ou ser atropelado por um “desenvolvimento” imposto ou induzido por outros.
O que queremos dizer com Florestania é, enfim, o nosso desejo de entrar no futuro carregando nossa alma amazônica. Não é um conceito universal, é só um incentivo para que os povos do litoral criem sua “litorania” e os do deserto a sua “desertania”. Que cada povo encontre em seu ambiente, sua história, sua cultura, a maneira como deseja fazer parte da humanidade e realizar sua natureza -externa e íntima.

[A palavra Florestania nasceu no Acre. Um de seus criadores, o jornalista e escritor Toinho Alves, *]